terça-feira, 5 de maio de 2009

Place de la Bastille



A ausência da liberdade humana se dá em quatro diferentes níveis: o cárcere do sujeito, o das leis naturais, o circunstancial e o social. Não há, efetivamente, como fugirmos desta prisão. Mas não precisamos submetermo-nos passivamente a ela em todas as ocasiões.




O cárcere do sujeito

Se há algo sobre a qual todas as ciências parecem concordar é a determinação humana. Seja cultural, social ou biologicamente, o homem sempre é fruto das circunstâncias, nunca de si mesmo.

As circunstâncias passadas, sob todos os aspectos, formam o indivíduo de hoje, como já discutimos aqui. E esta determinação torna o homem seu próprio refém, sem possibilidades de optar por algo diferente do que sua maneira de ver o mundo lhe permite.

Entretanto, a consciência de sua prisão pode paradoxalmente oferecer a possibilidade de se auto-determinar. Esta é a maior liberdade oferecida à humanidade. Não é possível desvencilhar-se de si mesmo, mas é possível inserir elementos que levem a uma modificação futura de si.

Esta modificação é fruto da vontade, e a vontade resulta do sujeito pré-determinado, de modo que se trata de uma liberdade ilusória, obviamente.

Mas, por mais ilusória que seja, a auto-determinação exige a capacidade de perceber as próprias grades. E, ao fazer isso, vemos que muitas destas grades estão encostadas, sem cadeados. Basta empurrá-las, e aquela prisão não existe mais – ou não é mais sentida.

O cárcere do sujeito, apesar de inexorável, é suficientemente maleável para que possa destruir outras prisões.


O cárcere das leis naturais

O homem tem sua existência condicionada a leis naturais. Não é possível evitar o fisiologismo, tampouco alterar as condições do tempo ou as leis da física. Não podemos negar a morte, seja a própria ou a de outrem. A dialética da natureza é indiferente a nossa vontade.

A partir do momento que não podemos arbitrar sobre esta dialética, e ela atua sobre nós e em nós, a natureza constitui um novo cárcere.

É interessante como a própria condição humana aprisiona algo. Somos obrigados a nos submeter ás condições da própria existência. A maior parte destas condições pode ser liberta com a morte – mas a própria morte não é necessariamente resultado da vontade.

Se considerarmos a liberdade como a possibilidade de arbitrar segundo sua própria vontade, aprisionar-se de forma consensual é de alguma forma libertar-se. A única maneira, portanto, de livrar-se do cárcere das leis naturais é desejar esta prisão.


O cárcere circunstancial

Como conseqüência inevitável de nossa incapacidade de atuar sobre os fatores que nos rodeiam, ocorrem as circunstâncias indesejadas que também nos aprisionam.

Não posso fazer com que outra pessoa aja da maneira que me convém; não posso evitar que um ataque terrorista ocorra, ou que uma festa esteja maçante. As circunstâncias, portanto, nos dominam.

De modo paralelo, as circunstâncias são as que nos levam ao dilema sartreano sobre a liberdade: somos obrigados a optar. Mesmo a escolha por não optar é em si uma opção.

Entretanto, se não podemos nos livrar da prisão de nossa própria liberdade, podemos modificar diversas das grades circunstanciais.

Há que se lembrar que a realidade refere-se ao sujeito. Um homicídio em massa não ocorreu se ele não foi percebido por mim; a lua pode até continuar no céu enquanto não a observo, mas ela só está efetivamente lá se minha consciência a abrange. Do mesmo modo, os desastres só existem se forem percebidos por mim como tal.

Não me é possível modificar um fato, mas posso escolher a maneira como permito que ele atue sobre mim. Assim, em nosso universo subjetivo, as circunstâncias são apenas fatos sobre os quais é possível arbitrar em sua essência.


O cárcere social

A sociedade constitui as grades mais óbvias da prisão humana. Não é incomum o desejo de libertar-se dela. “O inferno são os outros”, já dizia Sartre.

Uma sociedade compõe-se, além dos outros, de regras. Qualquer convívio num grupo coeso necessita delas. Mas se as regras e valores sociais são interessantes para a coesão do grupo, ao mesmo tempo cerceiam a liberdade individual. O que é desejável para o grupo nem sempre é desejável para o indivíduo, e vice-versa.

Parece simples pensar que basta livrar-nos da sociedade, isolarmo-nos. Entretanto, o homem é um animal social. A marginalização é um castigo, a solidão significa sofrimento. Não parece, portanto, que o isolamento social seja efetivamente uma opção considerável. Sofremos com as grades que constituem os alicerces da sociedade, mas sofreríamos tanto ou mais ao nos livrarmos delas. A própria solidão pode ser um cárcere terrível.

A pretensa liberdade de escolha aqui, portanto, se dá entre duas masmorras igualmente indesejáveis e sufocantes. Optamos entre uma ou outra prisão, e isso não pode ser considerado liberdade – já que não temos a escolha de livrarmo-nos de ambas.

O interessante é que nós somos a sociedade. Os outros, em grande parte das ocasiões, são um reflexo de nós mesmos. É claro que a sociedade do controle descrita por Foucault existe, mas nós somos ao mesmo tempo suas vítimas e algozes.

As pessoas vivem tão profundamente a sociedade que ela se torna a única realidade concreta. Tudo o que existe, o que faz sentido e norteia encontra-se abarcado pelos valores sociais. O antropocentrismo iluminista alienou de tal maneira a humanidade que é necessário um esforço hercúleo para perceber algo além dela mesma.

Entretanto, a sociedade constitui-se meramente de convenções, e como tal, pode ser quebrada sem, no entanto, nos colocarmos à parte dela.

Se conseguirmos nos colocar como observadores externos, perceberemos que estas convenções só fazem sentido dentro do contexto a que estão aplicadas – a própria sociedade humana. É desejável, dentro do grupo, que constituamos uma massa uniforme, que consigamos poder, sucesso e o ideal romantizado do amor, mas não há uma razão em si para que os obtenhamos. Um amigo me disse que só sofre com o julgamento quem se considera digno dele. Do mesmo modo, os valores sociais só adquirem importância para quem os considera importantes; do contrário, a pressão social torna-se um fato insignificante.

A condenação humana está em sua ilusão de liberdade obrigatória, mas alguns dos trincos que nos cerceiam são, na realidade, fruto de nossa própria cegueira.