PARTE II: OS FATOS
Interpretações sem sentido
Um exemplo dos erros que naturalistas e culturalistas costumam cometer pode ser visto em “O Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir (1).
Nesta obra, a autora se dedica a questionar e analisar as conclusões que se pode tomar acerca de algumas das afirmações científicas de então. Uma delas seria a de que o óvulo é um agente passivo, por sua natureza estática, e o espermatozóide ativo, por sua natureza motil; outra, o fato de que o espermatozóide é o responsável pela determinação sexual, uma vez que pode carregar consigo o cromossomo heterólogo.
Alguns autores da época atribuíram juízos a estes fatos biológicos, considerando-os prova da inferioridade e passividade naturais femininas, juízos estes que Beauvoir questiona colocando outras interpretações possíveis.
Mas o que eu questiono é: qual a relação efetiva entre estes dados biológicos e quaisquer juízos atribuídos? O óvulo é apenas uma célula germinativa. O que um caráter estático ou ativo aplicado a uma célula pode influir na determinação do indivíduo? Se há uma relação de interdependência entre os gametas masculinos e femininos para a geração de um embrião, como podemos atribuir valores diferentes a um ou outro? E, mesmo que se aplicasse, isso só poderia ser referente à própria célula.
Assim, a busca por interpretações de dados que se encaixem a seus valores são, no caso, realizadas por ambos os lados da questão, e giram em torno do mesmo erro de inferência. Na natureza não há melhores ou piores, todos os organismos estão bem adaptados. Dados biológicos, portanto, não servem para a atribuição deste tipo de valor.
Relações de superioridade
Um outro bom exemplo – e este é especialmente interessante para demonstrar que as conclusões costumam ser inadequadas mesmo quando se destinam a uma causa justa - são as afirmações registradas por diversos grupos a respeito dos estudos que mostram que não há raças dentro da espécie humana (2). Se não há raças, não se justifica o preconceito racial.
Entretanto, se é necessário a inexistência de raças para que o racismo se torne obsoleto, subentende-se que há razão em existir preconceitos – desde que existam diferenças.
Mas, então, na ausência de raças, podemos verificar a existência de populações diferentes na espécie humana. E alguns estudos sugerem que os judeus possuem um QI acima da média da população mundial (3). Podemos inferir daí o juízo de valor de que os judeus são uma população “melhor”? Me parece que a única inferência adequada é a de que grande parte deles se sai muito bem em testes de QI.
Como podemos estabelecer relações de superioridade ou inferioridade baseando-nos em uma ou outra característica? Nenhuma diferença justifica tal tipo de classificação, pois ela é generalista.
Generalizações de população para indivíduo
Seguindo por esta lógica, chegamos ao caso das generalizações por uma inadequada interpretação de dados descontextualizados da curva normal.
A curva normal de uma população possui geralmente o formato de sino, e reflete a distribuição de determinada característica nesta população. No eixo X estão os valores referentes á característica em questão, e no eixo Y está a freqüência encontrada.
O valor máximo representa a média da população, que é o valor/característica mais freqüente, e nas extremidades estão os valores mais raros.
Se eu afirmo que o QI dos judeus é mais alto (3), na realidade estou me referindo a este valor máximo, do ápice do sino, que descreve a população deles. Ao comparar com a curva normal da população mundial, veremos um deslocamento desta curva para a direita na população dos judeus. Segundo este estudo, o QI de um judeu ashkenazi (da Europa oriental) varia entre 107 e 115 pontos, enquanto a média da humanidade é de 100. Pois bem, se a variação é essa, podemos considerar que a média dos judeus seja 111.
Mas a curva normal da população mundial inclui todo e qualquer valor que ocorra.
O que podemos deduzir disso? Que há mais judeus nesta faixa de valor, mas veja quantas pessoas no mundo possuem um QI bem mais alto do que o deles. E quantas possuem um QI igual.
Assim, um estudo sobre médias de populações jamais poderá predizer que um indivíduo tem um valor mais alto de determinada característica do que outro. O único significado é que as médias das populações são diferentes!
E isso se dá a todos os estudos do gênero, não apenas a este.
E o problema continua!
Enquanto isso, na sala de justiça, os naturalistas e culturalistas debatem sobre a origem genética ou cultural dessa diferença – debate, por sinal, válido. Os culturalistas acreditam que, pelo fato de algo ser instituído culturalmente, isto significa que a sociedade deva ser modificada, se tal característica beneficia um grupo em detrimento de outro. Assim, recusam-se a ceder a um possível “naturismo”.
Os naturalistas acreditam que a sociedade foi construída a partir destas diferenças inatas, de modo que aplica-se o “direito natural”.
Ambos não percebem que ao modificar o meio, modifica-se a expressão da característica, de modo que ela sempre resulta do meio, mesmo que seja inata.
Mas ninguém se preocupa em questionar, a priori, o ponto principal: até que ponto é logicamente válido realizar inferências além das descrições, independentemente de suas origens?
Há uma belíssima contra-argumentação a este texto, redigida pelo filósofo Gilberto Miranda Jr., disponível em:
Referências Bibliográficas
(1) Beauvoir, S. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos. 4a. edição, v. 1. Difusão Européia do Livro, 1970.
(2) Pena, D. S. Receita para uma humanidade desracializada. Ciência Hoje On-line. Disponível em http://cienciahoje.uol.com.br/56561
(3) A inteligência é genética? Revista da semana. Disponível em http://revistadasemana.abril.com.br/edicoes/11/polemica/materia_polemica_259364.shtml?page=1