segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Facas cegas de um só gume



PARTE II: OS FATOS




Interpretações sem sentido


Um exemplo dos erros que naturalistas e culturalistas costumam cometer pode ser visto em “O Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir (1).


Nesta obra, a autora se dedica a questionar e analisar as conclusões que se pode tomar acerca de algumas das afirmações científicas de então. Uma delas seria a de que o óvulo é um agente passivo, por sua natureza estática, e o espermatozóide ativo, por sua natureza motil; outra, o fato de que o espermatozóide é o responsável pela determinação sexual, uma vez que pode carregar consigo o cromossomo heterólogo.


Alguns autores da época atribuíram juízos a estes fatos biológicos, considerando-os prova da inferioridade e passividade naturais femininas, juízos estes que Beauvoir questiona colocando outras interpretações possíveis.


Mas o que eu questiono é: qual a relação efetiva entre estes dados biológicos e quaisquer juízos atribuídos? O óvulo é apenas uma célula germinativa. O que um caráter estático ou ativo aplicado a uma célula pode influir na determinação do indivíduo? Se há uma relação de interdependência entre os gametas masculinos e femininos para a geração de um embrião, como podemos atribuir valores diferentes a um ou outro? E, mesmo que se aplicasse, isso só poderia ser referente à própria célula.


Assim, a busca por interpretações de dados que se encaixem a seus valores são, no caso, realizadas por ambos os lados da questão, e giram em torno do mesmo erro de inferência. Na natureza não há melhores ou piores, todos os organismos estão bem adaptados. Dados biológicos, portanto, não servem para a atribuição deste tipo de valor.



Relações de superioridade


Um outro bom exemplo – e este é especialmente interessante para demonstrar que as conclusões costumam ser inadequadas mesmo quando se destinam a uma causa justa - são as afirmações registradas por diversos grupos a respeito dos estudos que mostram que não há raças dentro da espécie humana (2). Se não há raças, não se justifica o preconceito racial.


Entretanto, se é necessário a inexistência de raças para que o racismo se torne obsoleto, subentende-se que há razão em existir preconceitos – desde que existam diferenças.


Mas, então, na ausência de raças, podemos verificar a existência de populações diferentes na espécie humana. E alguns estudos sugerem que os judeus possuem um QI acima da média da população mundial (3). Podemos inferir daí o juízo de valor de que os judeus são uma população “melhor”? Me parece que a única inferência adequada é a de que grande parte deles se sai muito bem em testes de QI.


Como podemos estabelecer relações de superioridade ou inferioridade baseando-nos em uma ou outra característica? Nenhuma diferença justifica tal tipo de classificação, pois ela é generalista.



Generalizações de população para indivíduo


Seguindo por esta lógica, chegamos ao caso das generalizações por uma inadequada interpretação de dados descontextualizados da curva normal.


A curva normal de uma população possui geralmente o formato de sino, e reflete a distribuição de determinada característica nesta população. No eixo X estão os valores referentes á característica em questão, e no eixo Y está a freqüência encontrada.


O valor máximo representa a média da população, que é o valor/característica mais freqüente, e nas extremidades estão os valores mais raros.



Se eu afirmo que o QI dos judeus é mais alto (3), na realidade estou me referindo a este valor máximo, do ápice do sino, que descreve a população deles. Ao comparar com a curva normal da população mundial, veremos um deslocamento desta curva para a direita na população dos judeus. Segundo este estudo, o QI de um judeu ashkenazi (da Europa oriental) varia entre 107 e 115 pontos, enquanto a média da humanidade é de 100. Pois bem, se a variação é essa, podemos considerar que a média dos judeus seja 111.


Mas a curva normal da população mundial inclui todo e qualquer valor que ocorra.


O que podemos deduzir disso? Que há mais judeus nesta faixa de valor, mas veja quantas pessoas no mundo possuem um QI bem mais alto do que o deles. E quantas possuem um QI igual.


Assim, um estudo sobre médias de populações jamais poderá predizer que um indivíduo tem um valor mais alto de determinada característica do que outro. O único significado é que as médias das populações são diferentes!


E isso se dá a todos os estudos do gênero, não apenas a este.



E o problema continua!


Enquanto isso, na sala de justiça, os naturalistas e culturalistas debatem sobre a origem genética ou cultural dessa diferença – debate, por sinal, válido. Os culturalistas acreditam que, pelo fato de algo ser instituído culturalmente, isto significa que a sociedade deva ser modificada, se tal característica beneficia um grupo em detrimento de outro. Assim, recusam-se a ceder a um possível “naturismo”.


Os naturalistas acreditam que a sociedade foi construída a partir destas diferenças inatas, de modo que aplica-se o “direito natural”.


Ambos não percebem que ao modificar o meio, modifica-se a expressão da característica, de modo que ela sempre resulta do meio, mesmo que seja inata.


Mas ninguém se preocupa em questionar, a priori, o ponto principal: até que ponto é logicamente válido realizar inferências além das descrições, independentemente de suas origens?




Há uma belíssima contra-argumentação a este texto, redigida pelo filósofo Gilberto Miranda Jr., disponível em:

http://miranda-filosofia.blogspot.com/2009/04/facas-gumes-e-reflexoes.html



Referências Bibliográficas


(1) Beauvoir, S. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos. 4a. edição, v. 1. Difusão Européia do Livro, 1970.


(2) Pena, D. S. Receita para uma humanidade desracializada. Ciência Hoje On-line. Disponível em http://cienciahoje.uol.com.br/56561


(3) A inteligência é genética? Revista da semana. Disponível em http://revistadasemana.abril.com.br/edicoes/11/polemica/materia_polemica_259364.shtml?page=1


Facas cegas de um só gume


PARTE I - AS IDÉIAS


É interessante como quase todos os debates sobre diferenças sociais e comportamentos caem no Nature x Nurture, e no chamado direito natural. Mas creio que grande parte desses debates, assim como diversas das referências, incorrem em erros comuns.



O determinismo


A princípio, há as críticas dos que defendem arduamente os fatores histórico-culturais como os maiores elementos desencadeantes do comportamento social atual. Sua principal indignação é o determinismo que os naturalistas impõem. Oras, veja que se considerarmos os genes ou os valores adaptativos como principais fatores, trata-se de determinismo, sem dúvida. Mas não estaria a humanidade também sob o determinismo histórico, se pensarmos de modo oposto?


Exceto os que consideram a existência de alma e transcendência – o que foge ao objetivo da abordagem cética que temos aqui – ninguém pode negar que o homem é fruto do conjunto de sua natureza e fatores histórico-culturais. Defendendo Nature ou Nurture, somos todos deterministas e reducionistas, pois reduzimos o homem às contingências determinantes.



Parcialidade


Há os defensores de um e outro lado que ignoram os argumentos contrários.

Mas um dos maiores princípios da genética é a de que a expressão é extremamente vinculada ao meio, e que os valores adaptativos se modificam com a evolução cultural e as alterações ambientais como um todo.


Por outro lado, não é possível pensarmos apenas no ambiente social como determinante de um comportamento, a não ser que se considere que o homem é um papel em branco. Mas isso seria ignorar a sua natureza física, relacionado ao corpo; seria considerar que o homem é fruto apenas de idéias, e que nada de material o influencia.


Assim, todos os argumentos que ignoram um ou outro aspecto são no mínimo parciais, ou até mesmo má-fé, em alguns casos.


Os culturalistas se afligem com as conseqüências éticas e políticas dos estudos biológicos, e têm sua razão nisso. Entretanto, a ciência busca, como princípio essencial, descrever o modo como a realidade se dá. Mas a natureza não possui em si princípios éticos. A moralidade, a política, são propriedades culturais. Um cientista idôneo não pode ser tendencioso, do contrário seus resultados seriam questionáveis e aplicáveis apenas à sua perspectiva pessoal. Assim, o levantamento de questões científicas e os resultados obtidos não podem submeter-se aos princípios éticos culturais – apesar de os meios utilizados para isso deverem ser questionados. Se o forem, nosso conhecimento da realidade será sempre a politicamente correta, e nenhuma descoberta real terá sido realizada.


O problema, portanto, não são as pesquisas que associam o comportamento a algum fator biológico. Se o conhecimento da realidade é uma busca de todos, a censura dos experimentos deste tipo seria uma forma de alienação.


O erro está nas inferências a partir destes resultados – tanto da parte de culturalistas como de naturalistas



A falácia do direito natural


Alguns naturalistas colocam que, pelo fato de instintos associarem-se a alguns comportamentos, isto os leva à categoria de “natural”, e, portanto, devem ser respeitados – o famoso direito natural. A meu entendimento, isso é uma falácia.


A falácia do direito natural deve-se ao fato já mencionado de que os princípios éticos são propriedade cultural. É fato, também, que a própria instituição da sociedade pode ser considerada como respondendo à princípios de adaptação. Mas, então, gera-se dois argumentos contrários à lógica do direito natural:


O direito em si é algo que retrata o que nossa razão determina como certo e errado, por mais que esta razão seja estritamente contingenciada, e tem como finalidade a manutenção da sociedade em coesão. Assim, se determinado comportamento, por mais que seja instintivo, tiver um valor contrário à esta coesão, não há porque ser mantido.


Pode-se ainda argumentar que fere os princípios da liberdade individual a não manutenção de um comportamento instintivo, e que, portanto, isso é absurdo. Entretanto, toda e qualquer sociedade é constituída por regras que visam a si, e isso reflete seu valor adaptativo como grupo coeso. O paradoxo entre liberdade individual e esforço coletivo se mantém, neste sentido, em qualquer sociedade na natureza.


Os culturalistas, ao invés de questionarem a validade do próprio direito natural, questionam a veracidade dos resultados de experimentos que possam acarretar inferências sobre o certo e o errado. Assim, restringem-se a uma explicação única da realidade, ignorando fatores que podem ser importantes na compreensão do porque as coisas são como se dão. Além disso, agindo assim, subliminarmente concordam com a utilização destes dados para estabelecer-se os princípios éticos e as políticas públicas.


Como Simone de Beauvoir cita, “em verdade, a natureza, como a realidade histórica, não é um dado imutável(1). Não há um dever-ser. Os dados históricos, assim como os biológicos, apenas nos levam a uma compreensão dos aspectos que envolvem a realidade presente. Mas não determinam necessariamente como o futuro pode ser, ou como é interessante ou justo nos comportar em sociedade.


Mas vamos aos fatos.




Referências Bibliográficas:


(1) Beauvoir, S. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos. 4a. edição, v. 1. Difusão Européia do Livro, 1970.