sábado, 22 de agosto de 2009

Quando o sexo não tem nenhum rock'n roll

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Há uma idéia corrente e explicitada principalmente sob a forma de humor de que homens se cansam da monogamia compulsória. A esposa aparece na figura da megera que o impede de ser sexualmente livre; a namorada é colocada sob a forma da fêmea que está á disposição quando não há possibilidades de sexo com outras mulheres. Fazer sexo com a mesma mulher por um longo período de tempo é colocado como um sacrifício.


Ao mesmo tempo, existe a idéia de que as mulheres se interessam menos por sexo do que os homens. A famosa desculpa da “dor de cabeça” é um exemplo disso. Parece que os homens se frustram porque as mulheres não estão sempre prontas para o sexo – mesmo que elas estejam na figura da esposa-megera. As próprias mulheres se gabam, muitas vezes, de não possuírem um grande desejo sexual. Falam do sexo como um fisiologismo barato e inferior, que não merece uma grande atenção. A maioria das piadas femininas ridiculariza a suposta obsessão masculina pelo sexo.



Algumas vão além. Diversas autoras feministas colocam o ato sexual como uma violência, remetendo à dominação social masculina. Outras descrevem o casamento como um estupro consentido, ou até mesmo uma forma de prostituição.


Mas pensemos um pouco.


A reprodução é o objetivo maior da existência do indivíduo, o modo a devolver seus genes ao pool gênico. O sexo existe como uma forma de reprodução com alto valor adaptativo; tão alto que é extremamente disseminado na natureza. A monogamia é rara, mas tem grandes vantagens adaptativas relacionadas ao cuidado parental – provavelmente uma sociedade humana “promíscua” não teria uma mortalidade infantil tão baixa quanto a que nossa espécie apresenta. A priori, portanto, ambos os gêneros deveriam ser interessados no sexo e na monogamia, de forma equivalente.


Porque, então, esta idéia de que os homens se interessam mais por sexo (incluindo o quesito “variedade”) e as mulheres se sentem forçadas a ceder aos impulsos sexuais masculinos, sem um desejo real?


O desejo sexual está intimamente relacionado aos hormônios sexuais. A testosterona é o principal responsável, mas em mulheres os progestágenos também cumprem este papel de estimulador do desejo. Entretanto, enquanto nos homens a produção de testosterona é algo constante, as mulheres passam ciclicamente por diversas flutuações na expressão destes hormônios.


Não há, entretanto, menção aceita à idéia de um cio humano. Em animais isto é óbvio: as fêmeas só aceitam a cópula durante o cio, e os machos geralmente só buscam fazê-lo quando a fêmea está neste período ovulatório. Em humanos sabe-se que existe um período determinado para a ovulação, mas não se fala em cio porque as mulheres aceitam a cópula em qualquer ocasião – e os homens as buscam também de modo independente ao ciclo hormonal feminino.


Será mesmo?


Vamos imaginar a seguinte situação: um cão macho está preso em um canil na companhia de duas fêmeas. Quando estas estiverem no cio, ele provavelmente copulará com ambas. Mas nas ocasiões em que elas estiverem em outros períodos do ciclo, elas se recusarão a fazê-lo mesmo que o macho porventura as assedie. Entretanto, outras cadelas fora dali estarão no cio – já que não se trata de um intervalo de tempo universal e padronizado entre indivíduos. Mesmo com duas fêmeas a seu lado, este macho se esforçará por livrar-se de alguma forma do que o encerra no canil, a fim de buscar a cópula com as fêmeas que estão no cio. Seria mais fácil ele abordar as próximas, e até mesmo forçar uma situação, mas ele estará mais interessado na outras neste momento.


Passemos, agora, ao que ocorre com os humanos. Porque será que as mulheres apresentam um interesse menos persistente no sexo, e algumas se sentem violentadas com as “obrigações conjugais”? Porque os homens consideram fastidioso fazer sexo com a mesma mulher indefinidamente, sempre que sentem algum desejo?


O famoso evolucionista Dobzhansky comenta, em seu livro (1), sobre a vantagem adaptativa da monogamia sexual. Ele diz que é interessante o intercurso sexual constante, porque as mulheres não possuem um período de cio definido. Esta constância aumentaria as probabilidades de o ato sexual coincidir com o período de ovulação e, portanto, otimizaria as chances de reprodução.


É possível, entretanto, que a lógica seja inversa. O intercurso sexual constante, resultado da idéia de monogamia, mascara o cio feminino. Como resultado de um valor social, o casamento e instituições do gênero (namoro, noivado, e situações que remetam ao amor romântico) colocam que o sexo só pode ser feito com o parceiro. Comparando com o exemplo dos cães, os homens, então, se vêm obrigados a satisfazer seus impulsos sexuais com a “fêmea próxima”, mesmo que ela não esteja no momento adequado – o que gera o fastio. As fêmeas se vêm pressionadas a atender a estes desejos masculinos, mesmo que este não seja também o seu desejo, para evitar que ele faça sexo com outras mulheres “fora do canil”.


A maneira como se dá os relacionamentos em nossa sociedade é interessante sob vários aspectos. Otimiza o cuidado parental, torna a família uma célula organizada da sociedade, permite a estipulação dos papéis sociais de forma clara. Enfim, é parte de um sistema social que indubitavelmente promove a coesão da espécie.


Mas para que estes relacionamentos ocorram, é necessário subjugar alguns comportamentos instintivos à valores estabelecidos, que podem ser denominados de forma única como amor romântico.


O mito do amor romântico traz em si o ideal antropocêntrico de que os fisiologismos não afetam nossa espécie. São considerados apenas um efeito colateral da existência; jamais devemos nos deixar vencer por eles. Ao mesmo tempo, tem imbutida a idéia de que apenas um ser escolhido, especial e único, deve ser digno do amor. Isso vem acompanhado de uma série de exigências muitas vezes extremadas, que levam à eterna frustração e à rima poética na forma de doxa entre amor e dor. Mas é claro: sabemos que nossos instintos devem ser sacrificados em prol da sociedade; nada mais justo do que a escolha de um parceiro ideal para que este sacrifício seja efetuado.


O principal motivo de desentendimento entre homens e mulheres em um relacionamento se dá no âmbito sexual. Isto porque não somos conscientes dos paradoxos de nosso comportamento social, e cada um dos gêneros se sente insatisfeito no que se refere aos desejos. O culpado sempre é o outro, por representar exigências que levam inexoravelmente á frustração.


Mas analise seus desejos e responda a si mesmo: nós realmente somos tão diferentes dos cães?



Referências


(1) Dobzhansky, T. G. O Homem em Evolução. Editora da USP, SãoPaulo, 1968.


Tirinha inicial: www.umsabadoqualquer.com



sábado, 8 de agosto de 2009

Uno et unum




O ponto principal de argumentação favorável ao monismo seria que duas entidades fundamentais com algo em comum não seriam verdadeiramente fundamentais, pois teria algo anterior a elas na escala ontológica, que seria o "'ponto em comum". Poderia ser representado, então, na forma de gradações.

Já o dualismo se fundamenta principalmente no próprio pensamento cartesiano, onde o sujeito é separado do objeto, e os objetos constituem unidades fundamentais em qualquer escala. Uma representação seria o sistema binário dos programas.

A nossa percepção é predominantemente dualista.
Percebemos, por exemplo, a gradação da luz até que se torne escuro, e isso seria a princípio uma percepção fundamentalmente monista. Mas, mesmo nessa gradação, dualizamos, porque vemos a progressão como "agora está mais claro que escuro", "agora, está meio a meio", "agora está mais escuro do que claro"... Ou seja, nossa percepção da gradação não é de unidade entre os dois objetos, mas uma mistura de objetos distintos.

Ao mesmo tempo, nossa lógica é também predominantemente dualista.
Temos a tendência a categorizar os objetos, porque, assim, se obtêm menos variáveis. Categorizando, obtemos elementos fixos que se confundem entre si, mas os dualizamos frente aos demais. Uma lógica com elementação monista é um tanto inviável, porque deveria envolver todos os "pontos em comum" de todos os objetos analisados, o que significaria infinitas variáveis. Além disso, estabelecemos relações claras de causa e efeito. Bem, se há uma causa para um efeito, estes são a princípio entidades diferentes.

O problema parece resolvido, de modo favorável ao dualismo. Mas vamos analisar com maior escrutínio a questão, exemplificando com a matemática.

Os números 1 e 2 são diferentes. Mas sabemos que, entre ambos, há infinitos números.

A princípio, se há gradação, há progressão. E, se há uma progressão, há o dualismo entre seus estágios, mesmo que infinitamente próximos. Mesmo em um número infinito, haverá um valor tal que o separe do próximo número. Por mais pontos em comum que 1,99(...)8 e 1,99(...)9 tenham, o ínfimo 8 e 9 da última casa devem ser duais, do contrário, não haveria progressão.
Então, mesmo indo ao infinito no conjunto numérico, a progressão se dará a partir de infinito + 1 em algum ponto.

Mas, entre o 8 e o 9 da última casa, também há infinitos números. Portanto, a abordagem correta seria que uma progressão se daria a partir de infinito + infinito em cada um dos pontos. Mas infinito + infinito é a mesma coisa que infinito. Portanto, sempre haverá um ponto em comum, mesmo numa progressão! Isso torna, portanto, o 1 e o 2 não diferenciados como unidades fundamentalmente distintas, apesar de haver uma progressão que os torna pontos extremos, e, portanto aparentemente diferentes.

Mas o universo não é só 1 e 2. É uma progressão dual de 0 a Z (sendo Z uma representação imaginária forçada do último infinito número, para tornar o conjunto finito).
Se observarmos o conjunto total de 0 a Z, esta progressão com infinitos números em comum faz com que, pela mesma lógica acima, todos os objetos sejam efetivamente os mesmos, apesar de diferentes.

Mas se considerarmos os pontos 1 e o 2, isoladamente, e depois o 3 e o 4, essa lógica não se validará. Entre o 1 e o 2 há infinitos números, e entre o 3 e o 4 também. Mas os infinitos números entre 1 e 2 não são os mesmos que entre 3 e 4, porque o início da progressão se dá em valores diferentes. Isso leva a impressão, portanto, que "1 e 2" e "3 e 4" são conjuntos qualitativa e quantitativamente diferentes. Ou seja, duais.

Entretanto, no caso dos números, nós podemos perceber claramente que os conjuntos "1 e 2" e "3 e 4" são uma amostragem tendenciosa, porque ignoramos a gradaçao entre 2 e 3. Então, nesse caso, o aparente dualismo é fruto de nossa retirada de variáveis reais.

Este problema de amostragem pode ser aplicado a realidade como um todo. Seria algo semelhante a nunca ter saído do Amazonas, e perguntar a você como é a vegetação em Goiás. Com a descrição, eu provavelmente teria a idéia de uma ilha do cerrado absolutamente separada da ilha da floresta. Mas, se observarmos bem, a zona de intersecção é tão grande e dinâmica que na prática é praticamente impossível saber quando é que começa uma e termina a outra.

Quando resumimos a matéria a seu elemento fundamental, esta lógica que leva ao monismo nos números se aplica. Tudo bem, que a física coloca partículas como os quarks, que seriam destituídas de matéria, como o elemento fundamental, e não algo como o infinito. Mas, a partir do momento em que são os mesmos, independentemente da qualidade desta matéria, eles representam o "ponto em comum" em toda a realidade, como o infinito faz com os números.

Mas então, me surge um outro paradoxo, sem resposta:

Como é possível a lógica e a percepção se darem de modo dual, e, através desta mesma lógica dual, concluir que o monismo é mais próximo do real do que o dualismo?

terça-feira, 5 de maio de 2009

Place de la Bastille



A ausência da liberdade humana se dá em quatro diferentes níveis: o cárcere do sujeito, o das leis naturais, o circunstancial e o social. Não há, efetivamente, como fugirmos desta prisão. Mas não precisamos submetermo-nos passivamente a ela em todas as ocasiões.




O cárcere do sujeito

Se há algo sobre a qual todas as ciências parecem concordar é a determinação humana. Seja cultural, social ou biologicamente, o homem sempre é fruto das circunstâncias, nunca de si mesmo.

As circunstâncias passadas, sob todos os aspectos, formam o indivíduo de hoje, como já discutimos aqui. E esta determinação torna o homem seu próprio refém, sem possibilidades de optar por algo diferente do que sua maneira de ver o mundo lhe permite.

Entretanto, a consciência de sua prisão pode paradoxalmente oferecer a possibilidade de se auto-determinar. Esta é a maior liberdade oferecida à humanidade. Não é possível desvencilhar-se de si mesmo, mas é possível inserir elementos que levem a uma modificação futura de si.

Esta modificação é fruto da vontade, e a vontade resulta do sujeito pré-determinado, de modo que se trata de uma liberdade ilusória, obviamente.

Mas, por mais ilusória que seja, a auto-determinação exige a capacidade de perceber as próprias grades. E, ao fazer isso, vemos que muitas destas grades estão encostadas, sem cadeados. Basta empurrá-las, e aquela prisão não existe mais – ou não é mais sentida.

O cárcere do sujeito, apesar de inexorável, é suficientemente maleável para que possa destruir outras prisões.


O cárcere das leis naturais

O homem tem sua existência condicionada a leis naturais. Não é possível evitar o fisiologismo, tampouco alterar as condições do tempo ou as leis da física. Não podemos negar a morte, seja a própria ou a de outrem. A dialética da natureza é indiferente a nossa vontade.

A partir do momento que não podemos arbitrar sobre esta dialética, e ela atua sobre nós e em nós, a natureza constitui um novo cárcere.

É interessante como a própria condição humana aprisiona algo. Somos obrigados a nos submeter ás condições da própria existência. A maior parte destas condições pode ser liberta com a morte – mas a própria morte não é necessariamente resultado da vontade.

Se considerarmos a liberdade como a possibilidade de arbitrar segundo sua própria vontade, aprisionar-se de forma consensual é de alguma forma libertar-se. A única maneira, portanto, de livrar-se do cárcere das leis naturais é desejar esta prisão.


O cárcere circunstancial

Como conseqüência inevitável de nossa incapacidade de atuar sobre os fatores que nos rodeiam, ocorrem as circunstâncias indesejadas que também nos aprisionam.

Não posso fazer com que outra pessoa aja da maneira que me convém; não posso evitar que um ataque terrorista ocorra, ou que uma festa esteja maçante. As circunstâncias, portanto, nos dominam.

De modo paralelo, as circunstâncias são as que nos levam ao dilema sartreano sobre a liberdade: somos obrigados a optar. Mesmo a escolha por não optar é em si uma opção.

Entretanto, se não podemos nos livrar da prisão de nossa própria liberdade, podemos modificar diversas das grades circunstanciais.

Há que se lembrar que a realidade refere-se ao sujeito. Um homicídio em massa não ocorreu se ele não foi percebido por mim; a lua pode até continuar no céu enquanto não a observo, mas ela só está efetivamente lá se minha consciência a abrange. Do mesmo modo, os desastres só existem se forem percebidos por mim como tal.

Não me é possível modificar um fato, mas posso escolher a maneira como permito que ele atue sobre mim. Assim, em nosso universo subjetivo, as circunstâncias são apenas fatos sobre os quais é possível arbitrar em sua essência.


O cárcere social

A sociedade constitui as grades mais óbvias da prisão humana. Não é incomum o desejo de libertar-se dela. “O inferno são os outros”, já dizia Sartre.

Uma sociedade compõe-se, além dos outros, de regras. Qualquer convívio num grupo coeso necessita delas. Mas se as regras e valores sociais são interessantes para a coesão do grupo, ao mesmo tempo cerceiam a liberdade individual. O que é desejável para o grupo nem sempre é desejável para o indivíduo, e vice-versa.

Parece simples pensar que basta livrar-nos da sociedade, isolarmo-nos. Entretanto, o homem é um animal social. A marginalização é um castigo, a solidão significa sofrimento. Não parece, portanto, que o isolamento social seja efetivamente uma opção considerável. Sofremos com as grades que constituem os alicerces da sociedade, mas sofreríamos tanto ou mais ao nos livrarmos delas. A própria solidão pode ser um cárcere terrível.

A pretensa liberdade de escolha aqui, portanto, se dá entre duas masmorras igualmente indesejáveis e sufocantes. Optamos entre uma ou outra prisão, e isso não pode ser considerado liberdade – já que não temos a escolha de livrarmo-nos de ambas.

O interessante é que nós somos a sociedade. Os outros, em grande parte das ocasiões, são um reflexo de nós mesmos. É claro que a sociedade do controle descrita por Foucault existe, mas nós somos ao mesmo tempo suas vítimas e algozes.

As pessoas vivem tão profundamente a sociedade que ela se torna a única realidade concreta. Tudo o que existe, o que faz sentido e norteia encontra-se abarcado pelos valores sociais. O antropocentrismo iluminista alienou de tal maneira a humanidade que é necessário um esforço hercúleo para perceber algo além dela mesma.

Entretanto, a sociedade constitui-se meramente de convenções, e como tal, pode ser quebrada sem, no entanto, nos colocarmos à parte dela.

Se conseguirmos nos colocar como observadores externos, perceberemos que estas convenções só fazem sentido dentro do contexto a que estão aplicadas – a própria sociedade humana. É desejável, dentro do grupo, que constituamos uma massa uniforme, que consigamos poder, sucesso e o ideal romantizado do amor, mas não há uma razão em si para que os obtenhamos. Um amigo me disse que só sofre com o julgamento quem se considera digno dele. Do mesmo modo, os valores sociais só adquirem importância para quem os considera importantes; do contrário, a pressão social torna-se um fato insignificante.

A condenação humana está em sua ilusão de liberdade obrigatória, mas alguns dos trincos que nos cerceiam são, na realidade, fruto de nossa própria cegueira.


segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Facas cegas de um só gume



PARTE II: OS FATOS




Interpretações sem sentido


Um exemplo dos erros que naturalistas e culturalistas costumam cometer pode ser visto em “O Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir (1).


Nesta obra, a autora se dedica a questionar e analisar as conclusões que se pode tomar acerca de algumas das afirmações científicas de então. Uma delas seria a de que o óvulo é um agente passivo, por sua natureza estática, e o espermatozóide ativo, por sua natureza motil; outra, o fato de que o espermatozóide é o responsável pela determinação sexual, uma vez que pode carregar consigo o cromossomo heterólogo.


Alguns autores da época atribuíram juízos a estes fatos biológicos, considerando-os prova da inferioridade e passividade naturais femininas, juízos estes que Beauvoir questiona colocando outras interpretações possíveis.


Mas o que eu questiono é: qual a relação efetiva entre estes dados biológicos e quaisquer juízos atribuídos? O óvulo é apenas uma célula germinativa. O que um caráter estático ou ativo aplicado a uma célula pode influir na determinação do indivíduo? Se há uma relação de interdependência entre os gametas masculinos e femininos para a geração de um embrião, como podemos atribuir valores diferentes a um ou outro? E, mesmo que se aplicasse, isso só poderia ser referente à própria célula.


Assim, a busca por interpretações de dados que se encaixem a seus valores são, no caso, realizadas por ambos os lados da questão, e giram em torno do mesmo erro de inferência. Na natureza não há melhores ou piores, todos os organismos estão bem adaptados. Dados biológicos, portanto, não servem para a atribuição deste tipo de valor.



Relações de superioridade


Um outro bom exemplo – e este é especialmente interessante para demonstrar que as conclusões costumam ser inadequadas mesmo quando se destinam a uma causa justa - são as afirmações registradas por diversos grupos a respeito dos estudos que mostram que não há raças dentro da espécie humana (2). Se não há raças, não se justifica o preconceito racial.


Entretanto, se é necessário a inexistência de raças para que o racismo se torne obsoleto, subentende-se que há razão em existir preconceitos – desde que existam diferenças.


Mas, então, na ausência de raças, podemos verificar a existência de populações diferentes na espécie humana. E alguns estudos sugerem que os judeus possuem um QI acima da média da população mundial (3). Podemos inferir daí o juízo de valor de que os judeus são uma população “melhor”? Me parece que a única inferência adequada é a de que grande parte deles se sai muito bem em testes de QI.


Como podemos estabelecer relações de superioridade ou inferioridade baseando-nos em uma ou outra característica? Nenhuma diferença justifica tal tipo de classificação, pois ela é generalista.



Generalizações de população para indivíduo


Seguindo por esta lógica, chegamos ao caso das generalizações por uma inadequada interpretação de dados descontextualizados da curva normal.


A curva normal de uma população possui geralmente o formato de sino, e reflete a distribuição de determinada característica nesta população. No eixo X estão os valores referentes á característica em questão, e no eixo Y está a freqüência encontrada.


O valor máximo representa a média da população, que é o valor/característica mais freqüente, e nas extremidades estão os valores mais raros.



Se eu afirmo que o QI dos judeus é mais alto (3), na realidade estou me referindo a este valor máximo, do ápice do sino, que descreve a população deles. Ao comparar com a curva normal da população mundial, veremos um deslocamento desta curva para a direita na população dos judeus. Segundo este estudo, o QI de um judeu ashkenazi (da Europa oriental) varia entre 107 e 115 pontos, enquanto a média da humanidade é de 100. Pois bem, se a variação é essa, podemos considerar que a média dos judeus seja 111.


Mas a curva normal da população mundial inclui todo e qualquer valor que ocorra.


O que podemos deduzir disso? Que há mais judeus nesta faixa de valor, mas veja quantas pessoas no mundo possuem um QI bem mais alto do que o deles. E quantas possuem um QI igual.


Assim, um estudo sobre médias de populações jamais poderá predizer que um indivíduo tem um valor mais alto de determinada característica do que outro. O único significado é que as médias das populações são diferentes!


E isso se dá a todos os estudos do gênero, não apenas a este.



E o problema continua!


Enquanto isso, na sala de justiça, os naturalistas e culturalistas debatem sobre a origem genética ou cultural dessa diferença – debate, por sinal, válido. Os culturalistas acreditam que, pelo fato de algo ser instituído culturalmente, isto significa que a sociedade deva ser modificada, se tal característica beneficia um grupo em detrimento de outro. Assim, recusam-se a ceder a um possível “naturismo”.


Os naturalistas acreditam que a sociedade foi construída a partir destas diferenças inatas, de modo que aplica-se o “direito natural”.


Ambos não percebem que ao modificar o meio, modifica-se a expressão da característica, de modo que ela sempre resulta do meio, mesmo que seja inata.


Mas ninguém se preocupa em questionar, a priori, o ponto principal: até que ponto é logicamente válido realizar inferências além das descrições, independentemente de suas origens?




Há uma belíssima contra-argumentação a este texto, redigida pelo filósofo Gilberto Miranda Jr., disponível em:

http://miranda-filosofia.blogspot.com/2009/04/facas-gumes-e-reflexoes.html



Referências Bibliográficas


(1) Beauvoir, S. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos. 4a. edição, v. 1. Difusão Européia do Livro, 1970.


(2) Pena, D. S. Receita para uma humanidade desracializada. Ciência Hoje On-line. Disponível em http://cienciahoje.uol.com.br/56561


(3) A inteligência é genética? Revista da semana. Disponível em http://revistadasemana.abril.com.br/edicoes/11/polemica/materia_polemica_259364.shtml?page=1


Facas cegas de um só gume


PARTE I - AS IDÉIAS


É interessante como quase todos os debates sobre diferenças sociais e comportamentos caem no Nature x Nurture, e no chamado direito natural. Mas creio que grande parte desses debates, assim como diversas das referências, incorrem em erros comuns.



O determinismo


A princípio, há as críticas dos que defendem arduamente os fatores histórico-culturais como os maiores elementos desencadeantes do comportamento social atual. Sua principal indignação é o determinismo que os naturalistas impõem. Oras, veja que se considerarmos os genes ou os valores adaptativos como principais fatores, trata-se de determinismo, sem dúvida. Mas não estaria a humanidade também sob o determinismo histórico, se pensarmos de modo oposto?


Exceto os que consideram a existência de alma e transcendência – o que foge ao objetivo da abordagem cética que temos aqui – ninguém pode negar que o homem é fruto do conjunto de sua natureza e fatores histórico-culturais. Defendendo Nature ou Nurture, somos todos deterministas e reducionistas, pois reduzimos o homem às contingências determinantes.



Parcialidade


Há os defensores de um e outro lado que ignoram os argumentos contrários.

Mas um dos maiores princípios da genética é a de que a expressão é extremamente vinculada ao meio, e que os valores adaptativos se modificam com a evolução cultural e as alterações ambientais como um todo.


Por outro lado, não é possível pensarmos apenas no ambiente social como determinante de um comportamento, a não ser que se considere que o homem é um papel em branco. Mas isso seria ignorar a sua natureza física, relacionado ao corpo; seria considerar que o homem é fruto apenas de idéias, e que nada de material o influencia.


Assim, todos os argumentos que ignoram um ou outro aspecto são no mínimo parciais, ou até mesmo má-fé, em alguns casos.


Os culturalistas se afligem com as conseqüências éticas e políticas dos estudos biológicos, e têm sua razão nisso. Entretanto, a ciência busca, como princípio essencial, descrever o modo como a realidade se dá. Mas a natureza não possui em si princípios éticos. A moralidade, a política, são propriedades culturais. Um cientista idôneo não pode ser tendencioso, do contrário seus resultados seriam questionáveis e aplicáveis apenas à sua perspectiva pessoal. Assim, o levantamento de questões científicas e os resultados obtidos não podem submeter-se aos princípios éticos culturais – apesar de os meios utilizados para isso deverem ser questionados. Se o forem, nosso conhecimento da realidade será sempre a politicamente correta, e nenhuma descoberta real terá sido realizada.


O problema, portanto, não são as pesquisas que associam o comportamento a algum fator biológico. Se o conhecimento da realidade é uma busca de todos, a censura dos experimentos deste tipo seria uma forma de alienação.


O erro está nas inferências a partir destes resultados – tanto da parte de culturalistas como de naturalistas



A falácia do direito natural


Alguns naturalistas colocam que, pelo fato de instintos associarem-se a alguns comportamentos, isto os leva à categoria de “natural”, e, portanto, devem ser respeitados – o famoso direito natural. A meu entendimento, isso é uma falácia.


A falácia do direito natural deve-se ao fato já mencionado de que os princípios éticos são propriedade cultural. É fato, também, que a própria instituição da sociedade pode ser considerada como respondendo à princípios de adaptação. Mas, então, gera-se dois argumentos contrários à lógica do direito natural:


O direito em si é algo que retrata o que nossa razão determina como certo e errado, por mais que esta razão seja estritamente contingenciada, e tem como finalidade a manutenção da sociedade em coesão. Assim, se determinado comportamento, por mais que seja instintivo, tiver um valor contrário à esta coesão, não há porque ser mantido.


Pode-se ainda argumentar que fere os princípios da liberdade individual a não manutenção de um comportamento instintivo, e que, portanto, isso é absurdo. Entretanto, toda e qualquer sociedade é constituída por regras que visam a si, e isso reflete seu valor adaptativo como grupo coeso. O paradoxo entre liberdade individual e esforço coletivo se mantém, neste sentido, em qualquer sociedade na natureza.


Os culturalistas, ao invés de questionarem a validade do próprio direito natural, questionam a veracidade dos resultados de experimentos que possam acarretar inferências sobre o certo e o errado. Assim, restringem-se a uma explicação única da realidade, ignorando fatores que podem ser importantes na compreensão do porque as coisas são como se dão. Além disso, agindo assim, subliminarmente concordam com a utilização destes dados para estabelecer-se os princípios éticos e as políticas públicas.


Como Simone de Beauvoir cita, “em verdade, a natureza, como a realidade histórica, não é um dado imutável(1). Não há um dever-ser. Os dados históricos, assim como os biológicos, apenas nos levam a uma compreensão dos aspectos que envolvem a realidade presente. Mas não determinam necessariamente como o futuro pode ser, ou como é interessante ou justo nos comportar em sociedade.


Mas vamos aos fatos.




Referências Bibliográficas:


(1) Beauvoir, S. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos. 4a. edição, v. 1. Difusão Européia do Livro, 1970.